terça-feira, 28 de junho de 2011

Devaneios...


Dogville - CartazRelato aqui uma aventura: há algum tempo, participando de uma "Semana de Arte e Cultura", promovida pelos Cursinhos Populares de Ribeirão Preto, tive a proposta do grupo para discutir o filme Dogville. Digo aventura, pois a tarefa seria realizar uma correlação entre o referido filme e a Análise Psicodramática, referencial teórico em que baseio meu trabalho clínico. Trata-se de um filme nada convencional e bastante denso, sendo que tais características  contribuiram para que considerasse essa tarefa uma aventura...
Mas, como não tenho tanto medo de aventuras, resolvi partilhar a minha com vocês. A seguir apresento uma breve sinopse do filme e em seguida minhas reflexões. Entretanto recomendo que assista! Depois poderemos debater...

Sinopse
Anos 30, Dogville, um lugarejo nas Montanhas Rochosas. Grace (Nicole Kidman), uma bela desconhecida, aparece no lugar ao tentar fugir de gângsters. Com o apoio de Tom Edison (Paul Bettany), o auto-designado porta-voz da pequena comunidade, Grace é escondida pela pequena cidade e, em troca, trabalhará para eles. Fica acertado que após duas semanas ocorrerá uma votação para decidir se ela fica. Após este "período de testes" Grace é aprovada por unanimidade, mas quando a procura por ela se intensifica os moradores exigem algo mais em troca do risco de escondê-la. É quando ela descobre de modo duro que nesta cidade a bondade é algo bem relativo, pois Dogville começa a mostrar seus dentes. No entanto Grace carrega um segredo, que pode ser muito perigoso para a cidade.

Devaneios psicológicos sobre o filme Dogville.
         
          Como comentei anteriormente, vale muito e apena ver o filme para entender melhor estas palavras, que foram a base de uma discussão coletiva na "II Semana de Arte e Cultura" realizada pelos cursinhos populares de Ribeirão Preto. 
          Didaticamente escolhi algumas falas significativas durante o percurso do filme para nortear as reflexões que apresento a partir de agora.

         “Abria caminhos na alma humana, bem no ponto que ela criava bolhas”. Essa era a tarefa de Tom Edson. O que seriam bolhas na alma humana? Vazios, zonas de desorganização psíquica, pontos muitas vezes inacessíveis ao comando de nosso consciente. Essas “bolhas” são formadas por nossas vivências primitivas (aquelas que se estabelecem nas primeiras relações do bebê com mãe, pai e outras figuras de afeto e são registradas em nível de sensação, num momento de estruturação do psiquismo) e recentes (que são excluídas por se chocarem com o conceito de identidade, ou seja, a idéia que fazemos de nós mesmos). Elas aprisionam sensações e percepções negativas ligadas às vivências. Abrir caminhos na alma humana é desfazer tais “bolhas”, é integrar as experiências que estão fora do controle de nossa vontade e para as quais temos poucas explicações conscientes à nossa Identidade Psicológica.

Nosso Conceito de Identidade é formado por modelos e conceitos que são adquiridos e assimilados e configuram o que chamamos de “mundo interno”, o qual é constituído apenas por material consciente. Para a psicologia, o conceito de identidade é uma construção individual que permite o desenvolvimento de uma imagem aceitável acerca de si mesmo, dos outros e da realidade. É o mecanismo que o ego encontra para não se chocar com o “mundo cão”, do qual faz parte e é co-responsável. É a construção do que o psicodramatista Victor Dias chama de “chão psicológico”. Já a Identidade Psicológica, como dito anteriormente, é formada por material excluído (vivencias primitivas em nível de sensação e vivências que vão contra o conceito de identidade e que se tornam inconscientes) e material consciente.
Nosso psiquismo exclui do consciente vivências e percepções que se chocam com a imagem que temos sobre nós mesmos, ou seja, nosso Conceito de Identidade. Entretanto, esta exclusão acarreta uma sensação de falta, como se existisse – e existe – uma parcela de nosso psiquismo que não conhecemos.  É essa sensação que provoca nas pessoas a busca por explicações sobre si mesmo e predispõe a criação de rótulos que justificam atitudes e pensamentos, e que dão uma falsa sensação de identidade.
No filme, podemos identificar claramente alguns desses rótulos em todos os personagens, mas principalmente em Tom e Grace. O primeiro se diz um estudioso das questões morais e alguém capaz de seguir como poucos seus ideais, mas que se corrompe ao mínimo sinal de que sua imagem poderia ser prejudicada perante o pai. Grace é o sinônimo da aceitação e resignação, e considerava sua missão ensinar isso à Dogville. Ela deveria fazer “coisas que as pessoas da cidade não precisavam, mas que acabaram aceitando ser feitas” e se submeteu a situações desnecessárias, mas as aceitou “piedosamente”. Entretanto, apesar de sua atitude abnegada e piedosa, algumas vezes se permitiu entrar na provocação dos outros, como no momento em que o filho de Vera lhe pede uma surra (e ela dá, relutante no início), testando seus limites e chocando suas percepções sobre seu “conceito de identidade”, ainda que momentaneamente.
Com o decorrer da história, Grace intensifica seus trabalhos, mas isso não deixa ninguém mais feliz. Para conquistar a aceitação das pessoas, seus sacrifícios só aumentam, e ao se dispor a fazer o que as pessoas exigem, Grace fica cada vez mais fragilizada e mais suscetível aos “carrascos” da cidade. Isso nos faz pensar em outros tipos de relações em que observamos pessoas que se fragilizam por conta de outras, submetendo-se às mais absurdas situações de exploração e violência, para não chocar o frágil conceito que têm sobre si mesmas e sobre os que os cercam.
Quanto aos outros moradores, no início do filme, recebem a caracterização de “gente boa e honesta”, pessoas que tem esperanças e sonhos mesmo sob as mais duras condições. Porém, como a melhor maneira de conhecer as pessoas é conviver com elas, à medida que o filme avança podemos fazer uma real avaliação dos moradores de Dogville: mostram-se fracos, corruptíveis, vaidosos e carrascos. Uma fala muito simbólica do cego pode ilustrar o que quero digo: “Como uma pessoa que ama a luz, deixa a cortina fechada?”. As pessoas, ainda que adorem ser vistas e admiradas, têm medo de se mostrar, de evidenciar seus defeitos, suas mazelas, e por isso fecham as janelas para dificultar a passagem da luz. Porém, nem sempre podem manter a janela fechada e impedir que suas fraquezas venham à tona. Os seres humanos criam mecanismos para se defender do julgamento dos outros, mas, sobretudo, para se defenderem do julgamento de si mesmas.
Retomando os conceitos apresentados por no início, podemos observar que a trajetória dos personagens do filme reflete a trajetória de todos os seres humanos quando falamos em Identidade Psicológica e Conceito de Identidade. As situações vividas podem suscitar nos indivíduos questionamentos, confrontamentos relacionados àquilo que temos segurança em relação a nós mesmos, nossos valores, crenças e comportamentos. Neste momento, o psiquismo pode colocar em prática o que chamamos de “defesas conscientes” e justificar o porquê de termos determinado pensamento ou sentimento ou de nos comportarmos dessa ou daquela maneira. Contudo, estas mesmas situações podem mobilizar angústia e desencadear o que chamamos de Processo de Busca. Essa angústia é gerada por uma sensação de incompletude, de insegurança com relação aquilo que se tem e que não corresponde à toda a realidade, fazendo-nos buscar a nossa verdade, o que realmente somos.
No filme, podemos identificar uma situação em que Tom se dá conta de uma contradição interna, algo que se choca com o conceito que tinha sobre si mesmo até então. Isso acontece quando Grace o questiona sobre ter se deixado corromper pelos outros, ter sido tentado a fazer o mesmo jogo de exploração. Eis aqui uma fala ilustrativa desse momento: “Talvez tenha sido tentado a se unir aos outros e me explorar. Você tem medo de ser tão humano? Não é um crime dizer não a si próprio, mas é maravilhoso que não o faça”. Nesse momento, Tom se irrita com Grace, inicialmente por ter sido capaz de questionar sua integridade, mas depois se dá conta de que sua irritação não se deve ao questionamento em si, mas ao fato de que fora descoberto em sua fraqueza. A partir daquele, momento Grace se tornou uma ameaça a ele.
Tom faz, então, uma constatação acerca de sua Identidade Psicológica, aquilo que realmente corresponde à realidade. No filme, ele admite que se descobrir arrogante e fraco naquilo que considerava sua maior virtude – a moral- não fora fácil. Na vida real, esta constatação também não é fácil. Integrar conteúdos excluídos de nosso consciente pode ser um processo longo e doloroso, que algumas vezes acontece através das circunstâncias de vida, mas, na grande maioria das vezes, acontece durante a psicoterapia. A facilidade ou dificuldade em integrar esse material excluído ao Conceito de Identidade, ou seja, tornar consciente uma verdade que antes era inconsciente, depende do que chamamos de auto-continência, ou seja, a capacidade que os seres humanos têm de suportar a própria angústia. Essa habilidade de se auto-aceitar, de flexibilizar conceitos pré-existentes, é um sinal de saúde mental!
Para Grace, esta constatação aconteceu por meio dos questionamentos de seu pai. Até então ela se protegia atrás de uma postura misericordiosa e complacente. Como ela poderia julgar aquelas pessoas, vivendo naquelas condições? Ele a acusa de arrogante, pois perdoa aqueles que a exploram. Ela não os julga, pois tem medo de ser julgada da mesma maneira, se solidariza, se identifica com seu comportamento de cães, que “lambem o próprio vômito”. Em determinado momento do filme, o narrador destaca o que seria uma habilidade de Grace: “afastar as coisas desagradáveis para longe, o raro talento de olhar para frente e bem para frente”. Mas o que é “afastar as coisas desagradáveis para longe”? O que significa, neste caso, “olhar para frente e bem para frente”? Significa nunca voltar para dentro de si mesma, evitar a angústia e nunca questionar posturas e convicções.
Ao final do filme, Grace se dá conta de toda a opressão que lhe foi imposta. Opressão a qual se submeteu sob a alegação de que tinha a missão de ensinar-lhes aceitação. Era como se “de repente a luz pudesse penetrar em todas as irregularidades das casas e das pessoas”. Contudo, a “vítima” que passara pelas mais diversas situações de opressão, reverteu a situação mudando de lado e tornando-se opressor, ainda que sob a alegação nobre de “quero fazer este mundo um pouco melhor”.
“Uma cidade não muito distante daqui”. Dogville retrata a realidade da alma humana, em sua crueldade, sua desumanidade. Realidade que independe de fronteiras ou cultura, mas que é da natureza da espécie e se repete em cada ser. Faz-nos pensar na convivência simultânea de dois personagens, vítima e carrasco dentro de nós. Tom e Grace refletem muito bem esta dicotomia. Ao abdicar de cenários, podemos observar profundamente cada personagem através de uma “transparência” que nos permite enxergar a alma humana sem qualquer defesa ou rótulo que possa justificar sua fraqueza. 

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