segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O direito de ser inteiro, e não pela metade!


  A inclusão é um mudança de paradigmas pautada na igualdade de direitos. Não se tratam apenas de mudanças pedagógicas para receber crianças e adolescentes com necessidades especiais nas escolas. São necessárias e importantes mudanças estruturais que efetivamente promovam a inclusão do deficiente. Mudar o paradigma não significa apenas alterar um jeito de fazer, mas mudar também o jeito de pensar, que está muito ligado a valores e concepções pré-estabelecidas. Infelizmente, a forma de pensar a deficiência e o deficiente ainda permanece ligada à um padrão de normalidade/anormalidade, que estabelece o que pode e o que não pode!
    Certamente muitas famílias ficariam assustadas com a postura da mãe de Gabriela, garota com Síndrome de Down que se tornou mãe. Exagero ou não, é um fato que nos faz pensar se a Inclusão não tem sido feita pela metade, pois colocamos crianças e jovens na escola, oferecemos oportunidades de trabalho, mas acabamos negando uma dimensão extremamente importante para todo ser humano: a afetividade e a sexualidade. Os deficientes,cada vez mais, tem conquistado o direito à educação, ao trabalho, a transitar livremente pelas ruas, mas quando o assunto é namorar, por exemplo, as pessoas se recuam.
   O que fazer então? Ainda não há uma resposta consensual, um jeito certo ou errado, mas certamente o caso de Fábio e Gabriela provoca uma série de reflexões sobre direito à manifestação do afeto e da sexualidade. É certo deixar meu filho deficiente namorar? Esta pergunta pode ser contraposta a outra: É certo impedi-lo de namorar, de vivenciar sua sexualidade e desempenhar papéis sociais de namorado/ namorada? 
    Acredito que a forma de proceder possa ser diferente em cada família e deva ser avaliada caso a caso, levando em conta a história de cada um. Certamente a presença da família junto ao jovem, aliada ao diálogo (vejam bem, eles tem total condição de conversar sobre o assunto) podem ajudar na construção de uma forma de lidar com esta situação
 Este é um tema que geraria bons debates em nossos grupos de apoio! Fica o convite...




Mamãe é Down


Reportagem publicada na Revista Època e acessada pelo link http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI11982-15228-3,00-MAMAE+E+DOWN.html

Há no mundo cerca de 30 casos documentados de mulheres com a síndrome que deram à luz. Uma delas é Maria Gabriela, mulher de Fábio e mãe da pequena Valentina
Solange Azevedo (texto) e Rogério Albuquerque (fotos), de Socorro (SP)

Rogério Albuquerque

EM FAMÍLIA


Valentina não herdou a deficiência intelectual do pai, Fábio, nem a síndrome de Down da mãe, Gabriela
Tio, a barriga da Gabriela está dando socos. ”Foi assim, no meio de um bate-papo inocente, que o estudante Fábio Marchete de Moraes, de 28 anos, deixou escapar que ele e a mulher brincavam de “examinar” o ventre dela. Fábio não imaginava que as pancadinhas partiam de uma criança em gestação. Maria Gabriela Andrade Demate, a dona da barriga, também de 28 anos, não fazia idéia de que estava grávida. Embora estivessem juntos havia três anos, dividindo o mesmo teto e a mesma cama, Fábio e Gabriela acreditavam que o sexo entre eles fosse proibido. Seus pais nunca tinham dito, de maneira explícita, que permitiam esse tipo de intimidade. Gabriela tem síndrome de Down. Fábio é deficiente intelectual.
Foi por desconfiar do abdome saliente de Gabriela que o amigo de Fábio procurou a mãe da jovem. “Os dois vêm a minha choperia quase todos os dias e me chamam de tio”, diz Vlademir Cypriano. “Eles me contam coisas que não falam para mais ninguém.” Um teste de farmácia, comprado às pressas, não foi suficiente para eliminar a suspeita. “Mesmo vendo as duas listrinhas do exame, não acreditava que a minha filha estivesse grávida”, afirma Laurinda Ferreira de Andrade. “Levei Gabriela a três ginecologistas e nenhum deu certeza de que ela pudesse ter um bebê. Percebi que estava ficando mais gordinha. Mas achei que fosse por comer demais”. A gestação avançada, descoberta aos seis meses, gerou pânico e encheu a família de dúvidas. Até o nascimento prematuro de Valentina, transcorreram cerca de 60 dias. “Foram os mais longos da minha vida”, diz Laurinda. “Minha filha não tinha feito o pré-natal desde o início, como é recomendado. Por causa da síndrome de Down, ela poderia ter problemas cardíacos. A gravidez era de risco”.
Apesar de o processo de inclusão dos deficientes na sociedade estar distante da perfeição, Gabriela representa uma geração que tem desbravado caminhos. Quando ela nasceu, em 1980, não era comum avistar crianças Downs nos arredores de Socorro – município paulista de 33 mil habitantes fincado na divisa com Minas Gerais, onde Gabriela cresceu – nem pelas ruas de grande parte das cidades brasileiras. “Na hora do parto, perguntei ao médico: ‘Doutor, a minha filha é perfeita?’”, diz Laurinda. “Ele me respondeu: ‘O que é ser perfeita? É ter braços? Pernas? Então ela é perfeita’”.
Embora desconfiassem do diagnóstico, nenhum profissional do hospital revelou à família a deficiência de Gabriela. Afirmaram apenas que ela tinha algum “problema genético”. Ao deixar a maternidade, Laurinda procurou ajuda. “Foi um choque descobrir que a minha filha era Down. O médico me contou da pior forma possível. Disse que ela ia ter um monte de doenças, ter problemas cardíacos e ia morrer. Até que uma amiga me alertou que eu teria de escolher entre fechá-la dentro de casa ou abri-la para o mundo. Vesti a Gabriela com a melhor roupa e saí.”
A desinformação – que em parte se deve aos próprios profissionais de saúde – perpetua um mito que a ciência já derrubou. É raro, mas mulheres Downs podem engravidar. “No mundo todo, há apenas cerca de 30 casos documentados de mulheres Downs que tiveram filhos”, diz Siegfried M. Pueschel, geneticista do Rhode Island Hospital, nos Estados Unidos, um dos maiores estudiosos da síndrome.
Os homens são quase sempre estéreis. Na literatura médica, há só três casos descritos de pais Downs. Com as mulheres é diferente. “Um terço delas é fértil. Um terço ovula irregularmente. E um terço não ovula”, afirma o geneticista Juan Llerena Junior, do Instituto Fernandes Figueira, uma unidade da Fiocruz. “Hoje, os jovens que têm a síndrome estão mais expostos à vida social e ao sexo. Muitos deles trabalham, têm amigos, saem para se divertir. Antes não era assim. Eles ficavam mais reclusos”, diz Pueschel.
A postura positiva de Laurinda, mãe de Gabriela, foi determinante no desenvolvimento da filha. Gabriela deu os primeiros passos sozinha aos 2 anos e 8 meses. Na infância, tinha medo de água e de andar de bicicleta. Afogava-se na piscina, mas pulava de novo até aprender a nadar. Ao andar de bicicleta, caía. Ralava as pernas. Subia de volta e pedalava. Apesar dos hematomas que ganhava nas aulas de judô, lutou para chegar à quarta faixa. Gabriela resistiu aos golpes – e revidou –, a ponto de pendurar uma medalha no peito. Dançou balé. Foi rainha de bateria de escola de samba e tocou tamborim numa ala dominada por homens. Gabriela fica indignada por não dirigir. “Se todo mundo pode, por que eu não posso?”, diz. Em Socorro, cidade do interior paulista onde vive, ela é mais popular que o prefeito. Todo mundo conhece um pouco de sua história.
Gabriela cresceu longe do pai, aprendendo com a mãe e os dois irmãos a não se conformar. “Um deficiente não rende se for poupado. Teria sido mais confortável ser uma mãe superprotetora. Mas eu decidi criar minha filha para o mundo”, afirma Laurinda. Até se descobrir grávida, Gabriela não parava quieta. Fazia aulas de equitação e treinava musculação. Foi na adolescência que ela começou a demonstrar interesse por meninos. Teve permissão para namorar. Para a mãe, um relacionamento estável e às vistas da família poderia afastá-la de eventuais aproveitadores.
O primeiro eleito de Gabriela foi Eric, um colega Down da Apae. O namoro correu bem durante anos. Até que Fábio, um amigo de infância que voltou a freqüentar a instituição, embaralhou a cabeça dela. Gabriela o paquerou. Ele resistiu. Gabriela insistiu. Fábio cedeu. Durante dois meses, Gabriela levou os dois namorados em banho-maria. O triângulo amoroso terminou quando Laurinda exigiu que a filha tomasse uma decisão. A opção dela por Fábio fez Eric virar uma fera. Os dois rapazes chegaram a se pegar numa festa de aniversário. Fábio ainda sente ciúme quando Gabriela encontra antigos colegas da Apae. Eric faz cara feia quando cruza o rival.
Em pouco tempo, Fábio e Gabriela estariam morando juntos. Não foi nada cuidadosamente planejado. O casal tinha dois quartos montados. Um na casa da mãe dele, a oficial de Justiça Benedita Aparecida Marchete, no centro de Socorro. Outro no sítio de Laurinda. Os 5 quilômetros que separavam as duas residências se mostraram distantes demais para os namorados. “Gabriela trouxe suas coisas aos poucos”, diz Benedita. “Um dia vinha dormir em minha casa e deixava algumas peças de roupa para trás. No dia seguinte, trazia mais. Ela foi ficando”.
As famílias de Fábio e Gabriela acharam prudente não separar o casal. Laurinda foi criticada. Mexeriqueiros da cidade comentavam que ela havia “largado” a filha. Alheios ao que os outros diziam, Fábio e Gabriela se tornavam mais e mais cúmplices. Ela faz questão de cuidar da saúde dele. Fica brava se a sogra tenta se antecipar e dar o anticonvulsivo diário para o filho. É Gabriela quem escolhe as roupas, faz a barba e lava os cabelos negros de Fábio. Ele não deixa por menos. Os 4 graus de hipermetropia fizeram Gabriela tão dependente de óculos que ela não os tirava do rosto nem para dormir – e não permitia que ninguém tivesse essa liberdade. Fábio contornou a mania. Todas as noites, espera Gabriela pegar no sono para tirar os óculos de seu rosto e soltar seus cabelos longos, lisos e loiros. Só depois ele adormece.
A chegada de Valentina, hoje com 5 meses, mudou a rotina de toda a família de Gabriela. O tio Frederico, estudante de Artes Cênicas na mineira Ouro Preto, visita Socorro com mais freqüência. Outro tio, Júnior, um dentista cheio de pacientes nas redondezas, costuma abrir espaço na agenda para zelar pela sobrinha. A avó Laurinda passou a viver com a neta. Deixou para trás um confortável sítio para morar a 70 metros da casa da filha e do genro. Tudo para que Valentina cresça junto dos pais. Apesar de viverem com a mãe dele, Gabriela e Fábio não passam um dia longe da menina. Sob a supervisão da avó Laurinda, Gabriela dá mamadeira, troca fraldas, brinca e cuida de Valentina. Fábio não costuma pegar a filha no colo porque ainda tem receio de derrubá-la. No bolso, carrega todo orgulhoso um celular com a foto de Valentina. “Ela vai aprender a chamar o meu nome”, diz.
Fábio nasceu de cesariana. Dois dias depois, começou a apresentar problemas respiratórios. Passou uma semana na incubadora. “O neuropediatra disse que ele deve ter tido uma queda abrupta de açúcar ou cálcio. Como não conseguia respirar, o lado esquerdo do cérebro foi afetado”, afirma Benedita. Fábio começou a andar depois dos 2 anos. Tem problemas motores e na fala. Sua dificuldade com as palavras (somada ao descaso de uma funcionária do cartório de Socorro) atrasou quase três meses o registro do nascimento de Valentina. Fábio não conseguia pronunciar seu endereço e o nome completo da menina: Valentina Andrade Demate e Marchete Moraes. O caso precisou parar na Justiça para que Valentina tivesse o nome do pai e da mãe na certidão. Como Fábio não sabe escrever, Gabriela assinou o documento.

UNIDOS

Valentina não tem síndrome de Down. Segundo Laurinda, os médicos também descartaram a hipótese de a menina ter herdado as características de Fábio, já que a deficiência dele não teria origem genética. “A probabilidade de uma mulher Down gerar um filho com a síndrome é de 50%”, diz o pediatra Zan Mustacchi, responsável pelo Departamento de Genética Clínica do Hospital Infantil Darcy Vargas, em São Paulo. Pelo menos metade dos embriões Downs não chega a nascer. Terminam em abortos espontâneos.
Estima-se que sul-americanas têm, em média, um bebê Down para cada 600 nascidos vivos. Grande parte do risco está relacionada à idade materna e é maior no início e no final da vida reprodutiva. “Sempre se falou sobre a ‘culpa’ da mulher. Hoje, sabemos que em 20% dos indivíduos Downs o material cromossômico a mais veio do pai, não da mãe”, diz Mustacchi.
Esclarecer os mitos sobre a síndrome traz benefícios à sociedade. Há cinco décadas, os Downs raramente chegavam à idade adulta. Problemas cardíacos congênitos que afetam quase metade deles e não eram diagnosticados, aliados à baixa imunidade não tratada, antecipavam-lhes a morte. Fatores como assistência médica mais eficaz e específica e maior inserção social contribuíram para que a expectativa de vida saltasse para 56 anos, em média. No Brasil, pelo menos 300 mil crianças, adolescentes e adultos têm a síndrome. Mais de 5 mil bebês Down nascem no país a cada ano.


As recentes conquistas dos Downs devem levar a novos debates. Um dos mais urgentes é sobre a sexualidade e os direitos reprodutivos. Quem deve decidir se eles podem ou não ter relações sexuais e filhos? “É como se colocássemos nessas pessoas um status permanente de crianças, dependência e impossibilidade de escolha”, afirma Débora Diniz, antropóloga e professora de Bioética da Universidade de Brasília. Cada caso é único. E a resposta para cada um deles não deve ser padronizada.
Pela lei, os direitos reprodutivos dos deficientes intelectuais são os mesmos de qualquer cidadão. A Justiça, no entanto, costuma presumir que nas relações sexuais de não-deficientes com deficientes está embutido algum tipo de abuso. Mesmo quando o sexo é “consentido”, a interpretação freqüente é que a permissão pode ter sido dada por ingenuidade. “Para grande parte da população, a deficiência intelectual justifica a imposição de outros limites”, diz Mustacchi. De acordo com o médico, por trás dos questionamentos sobre os direitos sexuais e reprodutivos dos deficientes há duas perguntas: “Quem vai cuidar do bebê?” e “E se ele também for deficiente?”.
Quando descobriu a gravidez de Gabriela, essas dúvidas tiraram o sono de Laurinda. A avó de Valentina achava que, aos 51 anos, não teria força para educar uma criança. O apoio veio dos dois filhos e de amigos. A casa de Laurinda vive cheia. É um entra-e-sai o dia inteiro. Todos querem cuidar um pouquinho de Valentina. Carlos Alberto Demate Júnior, o filho mais velho de Laurinda, é padrinho da menina. Acabou se tornando seu segundo pai. “O que mais me preocupa é a estrutura emocional de Valentina. Como, na infância e na adolescência, ela vai lidar com o fato de ter pais excepcionais?”, diz. “Ela pode achar o máximo eles terem vencido uma barreira – ou pode sentir vergonha”.
Gabriela faz parte da primeira geração Down que tem

relacionamentos estáveis e está formando famílias
Valentina nasceu no dia 19 de março, às 19h12. Logo depois do almoço, Laurinda notou que a filha entrara em trabalho de parto. Policiais foram abrindo caminho na estrada entre Socorro e Campinas para o carro passar. “Me ajuda, por favor, a gravidez é de risco”, gritava a avó. Não adiantou chegar rápido à maternidade. Gabriela teve de esperar horas até que seu organismo digerisse os dois pratos de comida mineira (tutu de feijão, bacon e carne de porco) antes da cesárea. Como nos últimos dias de gravidez ela ficou hospedada no sítio da mãe, Fábio soube do nascimento da filha perto da meia-noite. Aos prantos, pediu que um amigo o levasse ao hospital.
Gabriela é a primeira mulher na vida de Fábio. “A gente nunca o deixava sair sozinho de casa”, diz o motorista Mauro de Moraes, de 52 anos, o pai. “Ele mudou depois que começou a namorar Gabriela. Ficou mais independente e parece que está mais inteligente”. Durante a sessão de fotos para esta reportagem, Fábio se interessou pelo notebook e pela câmera do fotógrafo. Fez várias perguntas sobre tecnologia. Logo que Valentina nasceu, Fábio pediu uma câmera digital para o pai. Com ela, o rapaz registra as imagens da filha.
À noite, Gabriela e Fábio freqüentam a mesma escola. Ela está no 4º ano do ensino fundamental. Ele, no 1º. O casal leva uma vida singela. Na choperia do tio Vlad, Fábio toma refrigerante ou cerveja sem álcool. Gabriela escolhe amarula ou batida de maracujá. O gosto pelo sanduíche é idêntico: x-frango. O dele com alface. O dela, sem. Um dos passeios prediletos dos dois é zanzar pela Praça da Matriz, na frente da casa de Laurinda e Valentina. Todas as quartas-feiras, o casal ajuda o padre na missa. O sonho dos dois é se casar na igreja. Mas não serve um casamento modesto. Tem de aparecer na TV. “A gente já mandou até uma carta para o Gugu”, diz Gabriela.








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