terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Transtornos de Aprendizagem e Fracasso Escolar: uma correlação possível?

Por Luciana Stoppa dos Santos

* Texto elaborado para o Boletim "Aprendendo a Ensinar", do Projeto Plural.

Ao iniciar uma reflexão para o nosso boletim “Aprendendo a Ensinar”, penso nas contribuições que o Grupo de Estudos Permanente (GEP) e o Projeto Plural podem dar a você leitor, profissional da educação, da saúde, pai ou interessado no assunto: Transtornos de Aprendizagem e Fracasso Escolar. A idéia deste pequeno ensaio surgiu quando partilhava com o grupo minha participação em um evento ocorrido em Ribeirão Preto no mês de agosto: o Congresso Aprender Criança[2], cujo objetivo era estudar Educação Cérebro e Aprendizagem. Observei algumas coisas que, como profissional e investigadora na área de educação, fizeram-me refletir sobre antigas e polêmicas questões: os Transtornos de Aprendizagem e sua relação (ou não) com o Fracasso Escolar. Faço aqui alguns apontamentos que me suscitaram a reflexão.

Preocupa-me o fato de que num evento que se propôs discutir “Mente, Cérebro e Cognição”, a maioria dos palestrantes era de neurologistas e psiquiatras renomados no “tratamento” de Transtornos de Aprendizagem, mais especificamente a Dislexia e o TDAH. Somado a isso, a maior parte da programação do citado evento consistiu de palestras sobre fatores de risco, diagnóstico e trata-mento de Dislexia e TDAH sendo que o grande público do evento era de professores. Pouco se falou sobre estratégias pedagógicas e muito menos sobre questões sociais, econômicas e culturais relacionadas ao não aprender, ou fracasso escolar.

Não venho aqui questionar a competência destes profissionais no diagnóstico e tratamento destes transtornos. Questiono sim, até que ponto a medicina deve adentrar questões relativas aos problemas enfrentados pelas crianças que não aprendem. Não é raro professores receberem dos médicos um rol de estratégias pedagógicas a serem utilizadas com alunos com Dislexia e TDAH. O Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos (2009) [3] afirma: “sem dúvida o cérebro pode armazenar informações. Mas que tipo de informações? Os neurocientistas não tratam destas questões. Responder a elas é o trabalho de cientistas cognitivos, pesquisadores educacionais e outros estudiosos que investigam os efeitos das experiências sobre o comportamento e o potencial humano”.

Mas será que os educadores estão assumindo seu importante papel de mediadores da aprendizagem? Estão sendo isso investigadores e “especialistas” em estratégias pedagógicas dentro da sala de aula? Corremos o risco do Fracasso Escolar tornar-se problema de saúde pública e não de educação, legando à Dislexia e ao TDAH as causas do “não aprender”, ou seja, reduz-se uma questão com sérias implicações culturais, econômicas e socais à um fenômeno biológico.

Não se trata de negar o substrato biológico, mas trata-se de ampliar a discussão de um problema que tem sérias implicações sociais, econômicas e culturais. Acredito que há muitas lacunas na formação do professor quanto às bases neurais da aprendizagem, contudo tal formação deve abordar questões relacionadas ao funcionamento do cérebro saudável, para então pensar no cérebro com o possível transtorno. Ao obter este tipo de formação o professor terá total condição de traçar estratégias pedagógicas para ensinar a todos e a cada um em suas especificidades. Quando, no entanto, a formação privilegia o cérebro com transtorno, o perigo é intensificar avaliações subjetivas – os estereótipos – que corroboram o sucesso ou o fracasso escolar dos alunos. Collares e Moysés [1] ressaltam esse processo quando afirmam que “a aprendizagem e a não-aprendizagem sempre são relatadas como algo individual, inerente ao aluno, um elemento meio mágico, ao qual o professor não tem acesso, portanto, também não tem responsabilidade”.

O diagnóstico atribui (ainda que não explicitamente) a responsabilidade de não aprender unicamente à criança. Educa-dores, psicólogos e demais profissionais devem estar alertas às conseqüências da cultura de medicalização da sociedade, de um discurso que há séculos dita normas e padrões de saúde e doença, incluindo nestes “desvios da normalidade” as questões do “não aprender na escola”. Ainda que consideremos o TDAH e a Dislexia como fatores que interferem no não aprender, temos uma parcela imensa de crianças não diagnosticadas que não aprendem. E o que dizer daquelas que estão dentro da curva normal: será que estão aprendendo da melhor forma? Acredito que estratégias eficientes para crianças com TDAH e Dislexia podem e devem ser utilizadas com todas as crianças, pois normalmente privilegiam a presença do educador junto ao aluno e conseqüentemente favorecem o olhar deste profissional para as peculiaridades do mesmo.

Falar sobre o fracasso escolar implica discutir concepções de infância, de família e de escola, ampliando assim, o universo de reflexão e distanciando a questão da simples medicalização ou patologização do “não aprender”.

Se outras discussões são necessárias, partamos a elas.

A criança dos últimos vinte anos cresce em espaços extremamente limitados e convive muito pouco com seus pais, sendo que os profissionais da escola são muitas vezes os únicos adultos com quem ela se relaciona durante um dia inteiro. Por sua vez, os pais educados de maneira repressiva e que por conta das exigências mercadológicas distanciam-se de seus filhos, compensam a ausência com excesso de mimos e de permissividade, não permitindo a eles desenvolverem a importantíssima capacidade de tolerar frustrações! Somado a isso, há o intenso bombardeio de informações vindas dos veículos de comunicação e a presença maciça e muitas vezes indiscriminada da tecnologia na vida de crianças bem pequenas.

As mudanças de paradigmas são inevitáveis, porém vêm sempre acompanhadas de excessos: na tentativa de construir novas formas de ressignificar a vida, o ser humano acaba indo de um extremo ao outro! E as crianças tornam-se as maiores vítimas deste processo. O que dizer ainda do modelo educacional que segue à risca a cartilha da medicalização, padronizando e excluindo o que não se adapta: crianças portadoras de deficiência, por exemplo, conquistaram somente a partir da LDB de 1996 - Lei de Diretrizes e Bases para a Educação - o direito de freqüentar as escolas regulares, fora das salas especiais (essa ainda é uma questão polêmica, pois muitas escolas não se adaptaram para receberem as crianças).

A educação médica privilegia o sintoma e deixa de lado o sentido de sua manifestação. Os “sintomas” que temos são: crianças inquietas, “indisciplinadas”, que não estão aprendendo e que continuam sendo ignoradas. Entretanto, cabe aos profissionais da educação e gestores públicos identificar as causas do fenômeno e aplicar as medidas adequadas para solucioná-lo. Solucionar os “problemas de não aprender” significa promover a reestruturação dos projetos político-pedagógicos e dos currículos. Tal reestruturação deve ser acompanhada de mudanças na concepção de aprendizagem, que estimula a competição e responsabiliza unicamente o aluno ou a escola pelo sucesso e pelo fracasso, ao ser referendada pelo resultado.

Além disso, importa ficar atento às manobras políticas que se travestem em políticas de equidade como slogans do tipo “Educação para todos”. Para o Estado, a “redução” nos índices de Fracasso, ou redução da Evasão Escolar, significa a diminuição de custos sociais (menores investimentos em cultura, lazer e prevenção de violência, visto que as crianças agora estão dentro da escola) e políticos (a sociedade deixa de pressionar o Estado). Agora o aluno não abandona a escola, afinal a aprovação é compulsória. Entretanto, Freitas [4] afirma que houve, desse modo, a internalização do fracasso, pois o sistema educacional transformou a exclusão formal em exclusão subjetiva ao criar trilhas desvalorizadas no interior da escola, usando recursos como salas de aceleração, reforço de ciclo e correção de fluxo. Não critico a progressão continuada, pois acredito que a reprova não garante o aprendizado. Ao contrário, aponto algumas deturpações no modelo brasileiro, que não a utiliza da maneira como foi concebida – aqui ela acaba sendo aprovação automática.

Diante de polêmicas como estas, como ficam neurocientistas e educadores que se propõem a integrar as ciências do ensino-aprendizagem sem cair no lugar comum de apenas conhecer sobre a doença e seu diagnóstico? Qual o papel dos profissionais da educação que buscam essa nova forma de compreensão do fenômeno da aprendizagem? Acredito que a integração é aquela que busca dirimir qualquer concepção que exprima dualidade e considera os indivíduos a partir de seus determinantes subjetivos, sociais, culturais e biológicos. Dialogar e transitar por diferentes áreas de conhecimento - filosofia, antropologia, sociologia, psicologia, pedagogia e neurociência - é fundamental para o educador moderno, que cria novas possibilidades de trabalho dentro e fora da sala de aula e que tem papel decisivo na sistematização de novos conhecimentos e no direcionamento da agenda de pesquisas na academia.



Referências Bibliográficas:

*1+ COLLARES, C. A. L; MOYSÉS, M. A. A. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico. (A patologização da Educação).

Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_23_p025-031_c.pdf

[2] Congresso Aprender Criança 2010, Ribeirão Preto, SP, 2010.


[3] Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos, Como as Pessoas Aprendem, 2009.

*4+ FREITAS, L.C. A internalização da Exclusão. Educ. Soc., Cam-pinas, v. 23, n.80, p.299-325, 2002.

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