Semana passada (dias 11, 12 e 13 de novembro), participei do "1º Seminário Internacional Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos", evento promovido pelo CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo).
No evento, entre os diversos assuntos abordados, a questão da banalização dos diagnósticos que envolvem "dificuldades de aprendizagem" foi muito discutida. Em sua fala, Rosely Saião partilhou um texto muito interessante para refletirmos sobre o tema. Quantas vezes o diagnóstico estigmatiza uma criança que tem problemas para aprender? As diferenças individuais para aprender existem: dentro da curva normal do desenvolvimento existem aquelas que aprendem com muita facilidade e aquelas que aprendem com muita dificuldade. Por outro lado há aquelas crianças com reais problemas médicos que influenciam a aprendizagem, porém estes são a excessão e não a regra.
Cabe a nós educadores e profissionais da saúde ficarmos atentos ao "poder" que nos é delegado ao "avaliar" uma criança.O laudo muitas vezes acaba reduzindo as possibilidades da criança e por isso pode ser muito perigoso. É fundamental levar em consideração todas as variáveis que possam interferir nas dificuldades, ainda que isso implique questionar a eficácia de nossa própria pratica profissional.
Como psicóloga escolar tenho buscado me posicionar quanto às dificuldades dos inúmeros alunos com quem tenho trabalhado. Já tive contato com visões bastante diferentes, que vão do extremo da medicalização ao extremo da sociologização das dificuldades de aprendizagem. Certezas quanto ao assunto há poucas, principalmente porque as pesquisas em neurociências que se dedicam a investigar o TDAH e a Dislexia, por exemplo, ainda são incipientes.
Vivemos um momento em que deve prevalecer o bom senso. Não há conduta que seja geral e funcione para todas as crianças, principalmente quando elas envolvem o uso de medicação. Quanto mais abrangente for a investigação acerca das dificuldades da criança, tanto maior a chance de chegar ao cerne da questão, seja ela de origem biológica, afetiva,social ou multideterminada.
Vale a pena ler o texto a seguir e pensar um pouco mais sobre o assunto! Quem tiver alguma contribuição a dar e só se manifestar.
Até breve!
DISBICICLÉTICO
Emilio Ruiz Rodriguez Psicólogo na Fundação Down Cantabria, na Espanha
Dani é uma criança que não sabe andar de bicicleta. Todas as outras crianças do seu bairro já andam de bicicleta; os da sua escola já andam de bicicleta; os da sua idade já andam de bicicleta. Foi chamado um psicólogo para que estude seu caso.
Fez uma investigação, realizou alguns testes (coordenação motora,força, equilíbrio e muitos outros; falou com seus pais, com seus professores, com seus vizinhos e com seus colegas de classe) e chegou a uma conclusão: esta criança tem um problema, tem dificuldades para andar de bicicleta. Dani é disbiciclético.
Agora podemos ficar tranqüilos, pois já temos um diagnóstico. Agora temos a explicação: o garoto não anda de bicicleta porque é disbiciclético e é disbiciclético porque não anda de bicicleta. Um círculo vicioso tranqüilizador.
Pesquisando no dicionário, diríamos que estamos diante de uma tautologia, uma definição circular. “Por qué la adormidera duerme? La adormidera duerme porque tiene poder dormitivo”. Pouco importa, porque o diagnóstico, a classificação, exime de responsabilidade aqueles que rodeiam Dani. Todo o peso passa para as costas da criança. Pouco podemos fazer. O garoto é disbiciclético! O problema é dele. A culpa é dele. Nasceu assim. O que podemos fazer?
Pouco importa se na casa de Dani seus pais não tivessem tempo para compartilhar com ele, ensinando-o a andar de bicicleta. Porque para aprender a andar de bicicleta é necessário tempo e auxílio de outras pessoas.
Pouco importa que não tenham colocado rodinhas auxiliares ao começar a andar de bicicleta. Porque é preciso ajuda e adaptações quando se está começando. Pouco importa que não haja, nas redondezas de sua casa, clubes esportivos com ciclistas com quem ele pudesse se relacionar, ou amigos ciclistas no bairro que o motivassem. Porque, para aprender a andar de bicicleta não pode faltar motivação e vontade de aprender. E pessoas que incentivem!
Pouco importa, enfim, que o garoto não tivesse bicicleta porque seus pais não puderam comprá-la. Porque para aprender a andar de bicicleta é preciso uma bicicleta. (Felizmente, os pais de Dani,prevendo a possibilidade de seu filho ser disbiciclético, preferiram não comprar uma bicicleta até consultar um psicólogo.)
Transportando este exemplo para o campo da síndrome de Down, o processo é semelhante. Desde quando a criança é muito pequena,apenas um recém-nascido, é feito um diagnóstico – trissomia do cromossomo 21 – por um médico especialista, e verificado, com uma prova científica, o cariótipo. A partir disso, entramos em um círculo vicioso no qual os problemas justificam o diagnóstico, o qual, por sua vez, é justificado pelos problemas.
Por que a criança não cumprimenta, não diz bom-dia quando chega, nem adeus quando vai embora? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Achei que era mal-educada.
Por que a criança não se veste sozinha, e sua mãe a veste e despe todos os dias, se já tem oito anos? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Pensei que não lhe tinham ensinado.
Por que continua a tomar mamadeiras se já tem seis anos? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Imaginei que era comodismo de seus pais.
Por que a criança não sabe ler? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Pensei que não lhe haviam ensinado.
Por que não anda de ônibus ? “É que ela tem síndrome de Down”. Ah, bom! Pensei que não lhe permitiam fazer isso.
E, assim, uma lista interminável de supostas dificuldades que, por estarem justificadas pela síndrome de Down, não necessitam de nenhuma intervenção, além da resignação. Todas as suas dificuldades se devem à síndrome de Down.
Podemos estender a qualquer outra deficiência em que o diagnóstico médico ou psicológico possa ser utilizado como desculpa para nos eximirmos de responsabilidades. Se classificamos a criança como disfásica, disléxica, discalcúlica, disgráfica, deficiente visual ou auditiva, mental ou motora, disártrica ou simplesmente disbiciclética, estamos fazendo algo mais do que “colocar um nome” no que pode acontecer com uma criança. Estamos criando expectativas naqueles que a cercam.
Por isso, eu sugiro que antes de comprar uma bicicleta para seu filho ou sua filha, comprove que não sejam disbicicléticos. Vá que aconteça imediatamente após a compra dar-se conta de que se jogou dinheiro fora?